No dia 23 de Agosto de 2015 passaram 88 anos desde que, no mesmo dia de 1927, foram executados nos Estados Unidos os anarquistas Sacco e Vanzetti. Esta carta foi escrita por Nicolás Sacco ao seu filho Dante cinco dias antes de ser executado por um “crime” de que estava inocente. O seu único crime – e o de Bartolomeo Vanzetti – era o de serem operários anarquistas e lutarem pelo fim da exploração e da opressão.
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Prisão estatal de Charlestown, Estados Unidos, 18 de Agosto de 1927
Meu querido filho e companheiro:
Desde que te vi pela última vez pensei em escrever-te esta carta, mas o meu prolongado jejum e o pensamento de que não me pudesse expressar como era o meu desejo fizeram-me esperar até agora.
No outro dia, logo que deixei a greve de fome, o meu pensamento voou para ti e quis-te escrever de seguida, mas vi que as minhas forças físicas não eram suficientes e que não estava em condições de as readquirir de imediato, pelo que achei, portanto, que devia adiar. Mas é necessário que o faça antes que nos conduzam de novo para a cela da morte. A minha opinião é que mal o Supremo Tribunal recuse a revisão do processo, vão-nos levar para esse triste lugar e, na segunda-feira, se nada acontecer, matam-nos logo que tenha soado a meia-noite.
Eis-me, pois, aqui, completamente só contigo, com toda a força do meu amor, para te abrir os tesouros do meu pobre coração.
Nunca pensei que o nosso amor inseparável pudesse acabar tão tragicamente! Mas sete anos de dor dizem-me que isso se tornou possível.
No entanto, esta nossa separação forçada não mudou num ápice o nosso afecto, que permanece mais sólido e vivo que nunca. Pelo contrário, se isso é possível, aumentou ainda mais.
Isto não é apenas um grande modo de estar na vida, mas também a confirmação de um facto: que o verdadeiro amor fraterno não só se mostra nos momentos de alegria e prazer, mas ainda mais nos momentos de luta e sofrimento.
Recorda-o, Dante.
Nós demonstrámo-lo e, modéstia à parte, sentimo-nos orgulhosos disso.
Muito temos sofrido no nosso longo calvário. Protestamos hoje, como sempre temos protestado, e protestaremos sempre pela nossa liberdade.
Se desisti da greve de fome foi porque não já restava em mim sombra alguma de vida e eu tinha escolhido essa forma de protesto para reclamar a vida e não a morte.
O meu sacrifício estava animado pelo desejo vivíssimo que havia em mim de apertar entre os meus braços a tua pequena irmã, a querida Inês, a tua mãe, a ti e a todo os meus amados companheiros e amigos. Por isso, filho, a vida volta agora, calma e tranquila, a reanimar o meu pobre corpo, ainda que o espírito permaneça sem horizontes e sempre como perdido entre tétricas, sombrias, visões de morte.
E também, meu querido rapazito, depois da tua mãe ter-me falado tantas vezes de ti e de te ter visto nos meus sonhos durante dias e noites, foi uma alegria inefável poder-te ver, apertar-te entre os meus braços e falar contigo como costumava fazer noutros dias… naqueles dias…
Disse-te muitas coisas nessa ocasião e muito mais desejava dizer-te ainda; mas vi que continuavas a ser o amoroso rapaz daquela altura… que eras bom com a tua mãe, que tanto te ama, e não quis ferir mais profundamente a tua sensibilidade, porque estou seguro que continuarás a ser o nobre e bom jovem que agora és e que recordarás para sempre tudo quanto te disse.
Estou tão seguro disto como de que aquilo que te vou dizer agora fará vibrar o teu pobre coração; mas não chores, Dante, porque muitas lágrimas já têm sido derramadas em vão – a tua mãe tem-nas derramado durante sete anos, inutilmente. Por isso, filho, em vez de chorares, faz-te forte para poderes estar em condições de confortar a tua pobre mãe.
Vou-te dizer agora o que costumava fazer quando queria distrair a tua mãe de algum pensamento triste, para que tu possas repeti-lo quando for necessário. Íamos de mãos dadas, num passeio longo através dos campos, ao ar livre e debaixo do sol radiante; apanhava, ao passar, flores silvestres dum lado e do outro e oferecia-lhas, e quando pressentia que estava cansada, sentava-a à sombra de uma árvore e aí, na viva e doce harmonia da mãe natureza, ela esquecia tudo e era feliz, tão feliz…
Recorda também isto, meu filho. Nunca esqueças, Dante, de todas as vezes em que fores feliz na vida de não seres egoísta; partilha sempre a tua sorte com os mais infelizes, os mais pobres e os mais fracos que tu e nunca sejas surdo para os que reclamam por socorro.
Ajuda os perseguidos e as vítimas, porque eles serão os teus melhores amigos; eles são os companheiros que lutam e caem como o teu pai e como o Bartolomeo, que lutaram e que hoje caem por terem reclamado felicidade e liberdade para todas as pobres e maltrapilhas multidões do trabalho.
Nesta luta pela vida encontrarás alegria e satisfação e serás amado pelos teus semelhantes.
Por tudo o que a tua mãe me diz acerca do que tens dito e feito nestes últimos dias da atroz agonia sofridos por mim na cela da morte, estou certo de que serás um dia o jovem por mim sonhado tantas vezes e esta certeza faz-me quase feliz.
Ninguém pode saber ou dizer o que será de nós amanhã, mas se nos matarem tu não deves nunca esquecer de olhar os teus amigos e companheiros com o mesmo sorriso jovial nos lábios com que olhas os teus afectos mais íntimos, porque eles amam-te com o mesmo amor de que rodeiam todos os demais companheiros infortunados e perseguidos.
Isto diz-te o teu pai, o teu pai que é todo para ti; o teu pai que os ama como ama, que sabe e conhece a nobreza da fé – que é a minha, Dante -, os supremos sacrifícios que eles afrontam pela nossa liberdade, porque eu combati ao seu lado, eles são ainda aqueles que fazem com que viva uma esperança no nosso coração. Somente eles podem evitar a nossa electrocução. Esta é a luta, a guerra entre os ricos e os pobres, pela salvação e pela liberdade que tu, meu filho, compreenderás melhor quando fores mais velho, em toda a sua grandiosidade e nobreza.
Pensava constantemente em ti, meu Dante, nos dias triste passados na cela da morte. O canto, as vozes ternas das crianças que chegavam até mim do jardim ali próximo, onde brincava a vida e a alegria sem problemas – apenas a poucos passos de distância dos muros que aprisionam numa atroz agonia três almas em amargura – tudo me fazia pensar insistentemente em ti e na Inês, e desejava-os tanto, tanto, oh filhos meus!…
Depois pensei que tinha sido melhor não teres vindo ver-me nesses dias porque terias encontrado na cela da morte a presença do quadro espantoso de três homens em agonia, à espera de serem mortos, e quem sabe que efeito teria podido produzir na tua mente uma visão tão trágica e que influência poderia ter no teu futuro.
Por outro lado, se não fosses um rapaz demasiado sensível, esta visão poderia ser-te útil quando, mais para a frente, a pudesses recordar para contar ao mundo toda a vergonha deste século que está contida nessa forma cruel de perseguição e de morte infame.
Sim, Dante, poderão crucificar os nossos corpos, como já o fazem desde há sete anos, mas jamais poderão destruir as nossas ideias, que permanecerão ainda mais belas para as gerações futuras.
Dante, quando me referia a três vidas, queria dizer-te que connosco está outro jovem, Celestino Madeiros, que vai ser morto juntamente connosco. Ele já esteve duas outras vezes na horrível cela da morte – que deve ser destruída com a picareta do progresso – essa cela horrível que desonra o Estado do Massachussets. Estas celas deveriam ser destruídas, para no seu lugar se levantarem fábricas e escolas onde se ensinasse o útil e o bom a centenas de crianças.
Dante, exorto-te mais uma vez a seres bom e a amar com todo o teu afecto a tua mãe nestes dias tristes, e eu morrerei com a certeza de que, com todos os teus cuidados e afectos, ela será menos infeliz. E não deixes de conservar um pouco do teu amor para mim, filho, porque eu amo-te tanto, tanto…
Os meus mais fraternos cumprimentos para todos os bons amigos e companheiros.
Beijos afectuosos para a pequena Inês, para a mamã e para ti um abraço do coração do teu pai e companheiro
Nicolás Sacco
PS. Bartolomeo envia-te também os seus carinhosos cumprimentos. Espero que a tua mãe te ajude a compreender esta carta, uma vez que não pude escrever melhor e de maneira mais clara, porque não me sinto suficientemente bem e estou fraco, tão fraco… Adeus!
Ver também:
Sacco y Vanzetti: Condenados a muerte por pobres, inmigrantes y anarquistas (castelhano)
Sacco y Vanzetti: Sus vidas, sus alegatos, sus cartas [livro]
[Documentário/castelhano] Sacco and Vanzetti (Peter Miller, 2006)
Filme Sacco y Vanzetti (versão original falada em italiano)