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Corrupções e Anarquias
A corrupção está em oposição a uma eficaz governação, ao desenvolvimento dum projecto. Assiste-se a um crescendo de denúncia de casos de corrupção, mas nem por isso ouvimos falar de medidas que efectivamente resolvam o problema. Considerando que a corrupção é uma coisa socialmente má, teremos portanto reflectir sobre essa realidade e procurar ver mais além.
A Corrupção é um acidente ou um desvio e pode ser eliminada; ou um aspecto intrínseco às sociedades, descontrolando-se quando as sociedades em si, se descontrolam, e como tal tem de ser aceite; ou é uma realidade mediática, que sempre ocorreu, mas que agora ganha visibilidade, uma ilusão?
Eu defendo que não podemos falar de corrupção, sem falar do sistema onde ela ocorre, e como há vários sistemas económico-sociais, também temos de falar de várias corrupções.
Assim se gostamos do Sistema, achamos que sua corrupção é má, e vice-versa se não gostamos do sistema, achamos que a sua corrupção é boa.
Ora desde o neolítico, com a emergência de estados, decorrente das inovações tecnológicas que possibilitavam grandes excedentes sociais, e a possibilidade de sua apropriação por uma elite, que temos Aristocracias Autoritárias, que se servem dum aparelho estatal repressivo e fiscal, que permita a opressão das populações e extracção de seus excedentes. Basicamente a estrutura social, política e económica era privada, uma Aristocracia, e servia-se do Aparelho de Estado como Instrumento Predador.
A grande maioria da população tinha assim de tentar corromper esta estrutura, conseguindo subtrair-lhe parte de que lhe tinha sido tirado. Era um processo tanto mais democratizante quantos mais conseguissem obter mais por esse modo, uma melhor distribuição dos excedentes, e se todos o fizessem de igual modo e por igual montante era a sociedade justa ambicionada. Essa era o sonho e o projecto dos Liberais do Sec XVIII, que nesse contexto tinha a sua justificação democratizante. A revolução Nor-Americana foi nesse sentido garantindo a todos um seu quinhão de rendimento, e sob uma estrutura governativa que garantisse a liberdade e possibilidade de o concretizar.
Com a Revolução Francesa, esse projecto dum Estado Democrático, Universal e público, ganhou forma, arredando a Aristocracia e os interesses particulares das preocupações da governação, mudando radicalmente a sua natureza.
Mas a Aristocracia e os seus interesses não foram eliminados, simplesmente se modificaram os termos de sua existência. Perdeu o controlo total do aparelho repressivo e fiscal, mas não deixou de ter vantagens de propriedades, rendimentos e sobretudo de saberes e poderes, e usando-os em seu benefício. A estratégia passou agora para usar as suas competências para infiltrar e retomar o controlo do Aparelho de Estado que agora se via ampliado para corresponder ao interesse comum público, tanto nos sectores produtivos, como financeiros e sobretudo de providência ( educação, saúde segurança social, e governação urbanística do espaço público) e assim um bolo ainda mais apetecido.
Por essa infiltração, a Aristocracia conseguiu por dentro ir tomando medidas que enfraqueciam o Estado que se lhe devia opor, e assim novamente aumentavam o seu poder. Foi permitido que mantivesse a posse de importantes meios de produção, e sobretudo dos Bancos e os meios financeiros. Ao mesmo tempo que limitava a acção pública nestes sectores de produção e distribuição de bens, decorrentes da posse pública de meios de produção. Conseguiu que o ensino público não fosse universal, mantendo o seu sistema de formação e reprodução de elites, mas sobretudo impedindo que este ensino público fosse de qualidade, em especial nas áreas de interesse político e de governação, desviando-o para uma formação profissional que já os escravos tinham, e de forma a que, trabalhadores e técnicos submissos não ponham em causa a sua ascensão. Por manter a sua fortuna, e competências governativas, conseguiu mesmo ir infiltrando o Aparelho de Estado, como uma neo-aristocracia colocada em especial nos lugares de topo, até o conseguir capturar, de modo a voltar a ser um instrumento ao seu serviço, e novamente um Estado Predador.
Assim neste Estado Democrático que se foi instalando desde as Revoluções Republicanas do Sec. XVIII, surge uma corrupção, mas agora de sentido contrário, aristocratizante, mais no topo da estrutura Pública, e de desvio de importantes somas, de reforço da Aristocracia, de fragilização do interesse público. O sentido Liberal agora já não é pelo reforço das iniciativas populares generalizadas, mas do enfraquecimento do interesse público e comum, e do direito e liberdade dos mais fortes, a aristocracia, de esmagar os mais fracos. Chama-se a esta forma de liberalismo instalada num sistema de sentido oposto porque de interesse público, que corrompe, de neo-liberalismo, portanto de sentido oposto ao liberalismo.
A realidade não é no entanto pura, duma Aristocracia ou duma Democracia. Em cada situação existe a acção e o potencial da oposta retomar o poder. Há uma luta interna nas estruturas governativas, entre o interesse comum, concretizado numa República e num regime Democrático, e o interesse particular, concretizado num regime Aristocrático. Na situação actual a Democracia é parcial, e frágil, e existem fortes acções aristocratizantes, a resultante depende da forma como cada movimento se afirma, ou pelo aprofundamento da Democracia com mais Igualdade e Justiça, ou pelo regresso à Aristocracia, com mais desigualdade e força dos interesses Plutocráticos. O Aparelho de Estado é um instrumento, e no seu seio defrontam-se os dois projectos.
Igual análise se pode fazer dos movimentos anarquistas, que valorizam o interesse individual, contra as forças opressivas. Numa estrutura Aristocrática de poder privado, apoiada num Aparelho de Estado Repressivo e de Predação Fiscal, é de valorizar todo o empoderamento do indivíduo, e tudo o que se faça para enfraquecer o poder central, e assim um movimento anarquista e acrata. Mas numa sociedade que atingiu uma forma mais avançada de democracia, Republicana, mesmo que infiltrada por neo-aristocracias e fortemente capturado e desviado num sentido neo-aristocratizante, a luta já não pode ser contra o poder republicano, contra o Aparelho de Estado em geral, mas discriminativa contra as neo-aristocracias que o infiltram, e por outro lado pelo reforço das formas de governação local, assembleárias e que tornem efectiva uma Democracia Deliberativa, promovendo a descentralização do poder.
Uma intervenção neo-anarquista cega e contra o aparelho republicano, sobretudo que não constrói alternativas, seja nos sectores de Governação Local, seja nos Produtivos e de Distribuição, objectivamente permite o reforço da iniciativas aristocráticas, permite uma ainda maior destruição do Estado Republicano, que apesar de tudo ainda tem restos de democracia. Esse ataque de forma cega e contra todas as suas estruturas, justifica o reforço das medidas de poder central, e assim, de ainda maior infiltração aristocrática, passando ainda mais poder para estruturas sem qualquer representatividade ou prestação de contas, e assim o total regresso às formas históricas de governação aristocrática pura.
Sejamos cão que morde, que impede a aproximação dos inimigos, e que constrói o Estado Democrático e Republicano, desenvolve todas as formas de governação deliberativa democrática, republicana e de base, e não cão que ladra, mas que de forma ineficaz, não impede que a caravana aristocrática e plutocrática passe.
Porque o Estado ainda é República e Democracia, mesmo débil e capturado em muito de seu espaço e mecanismos, é errado falar de construir alternativas, considero-o essa atitude mesmo profundamente reaccionária, de 5º coluna, que isso é colocar-nos de fora, abandonar todo o ouro aos bandidos, quando ainda podemos lutar por ele, e considerar como batalha totalmente perdida, retirando-nos da luta efectiva que ocorre dentro do Aparelho do Estado.
Saudações, boas leituras e reflexões para o ano que renasce .
EBM