texto retirado daqui http://alas.no.sapo.pt/index.htm
Espanta hoje a quantidade de jornais ligados ao mundo do trabalho que,a partir do início do século XX , se publicaram num país predominantemente rural e com uma população analfabeta como era Portugal. E, embora muitos dos títulos tivessem vida curta, o papel da imprensa proletária no movimento de emancipação social promovido pelos operários e pescadores por um lado, e trabalhadores rurais no outro, foi enorme, a despeito do que poderiam sugerir os circunstancialismos nacionais, e as condições materiais e psíquicas dos trabalhadores durante a I República. Essa imprensa é hoje uma fonte histórica muito importante e frequentemente a única disponível face ao desaparecimento de toda aquela documentação das associações de classe e dada a forma tristemente deplorável de como a documentação contemporânea é geralmente tratada. Nós, ao olharmos para trás muitas questões se podem colocar. Como explicar a sua profusão num país de desenvolvimento agrário? Qual o seu universo? De que forma e em que medida ela era “lida” pelo povo e população a que se destinava? Enfim, como reler hoje essa imprensa?
A imprensa operária e popular encontra-se hoje , transfigurada nos boletins corporativos que as centrais sindicais enviam, por via postal e a título de oferta , aos sindicalizados e numa panóplia de revistas de grande tiragem do género “Maria” , “Olá” ou “TV Guia”. No primeiro caso , os trabalhadores sindicalizados tomam conhecimento do pensamento dos seus dirigentes e dos seus problemas “enquanto sindicalizados”; e aqueles que, real ou supostamente, os representam,lamentam-se por vezes de que “ninguém lê o jornal do sindicato”,à excepção deles próprios. Os textos neles incluídos transpiram,para além das posições oficiais do sindicato, as tendências e preocupações de forças que no seu interior buscam o controlo e o poder . Dá-lhes um ar de diversidade que fica bem de acordo com a moralidade democrática vigente.
No segundo caso , a leitura da massa anda afastada dos negócios públicos , detém-se nas áreas do lazer, do mundo privado pronto a consumir , dos sentimentos, do sexo, do amor e do lar, etc. A suposta ideia que temos de que esse público é maioritariamente feminino deixa de fora o universo masculino,grande consumidor dos jornais desportivos ( melhor dizendo; de futebol ). Entre “A Bola”, “O Jogo”, “Record”, a “Maria” e similares gravita o imaginário da Cultura Popular Portuguesa, muito homogénea na heterogeneidade das escolhas, como se quer em período de pós-modernice e consumismo histérico de 2000.
A realidade é, sem dúvida, muito mais complexa (deixamos a tarefa ao leitor de procurar auxílio na literatura especializada) mas,no fundamental,o que procuramos mostrar é que ninguém se lembraria de procurar nos títulos de maior tiragem nem nos programas ditos mediáticos de maior audiência os fundamentos dessa opinião pública escravizada que é um dos alicerces dos regimes “democráticos”.
A ideia de que a opinião pública é largamente constituída por organizações e por grupos intermédios, parece-nos evidente. Neste contexto,o peso da imprensa escrita informativa e de opinião pode medir-se pela sua capacidade de difusão. Um indicador é,sem dúvida, o número de exemplares publicados e a área de cobertura geográfica. Ora , se recuarmos até aos anos da Grande Guerra,a realidade portuguesa era de tal forma diferente que não faz nenhum sentido aplicar-se nem os indicadores nem o aparelho conceptual utilizados genericamente no tratamento da informação nas sociedades mais avançadas. Sob pena de anacronismo.
A imprensa proletária é filha de um tempo em que a maioria dos trabalhadores manuais urbanos se associavam em grupos culturais , recreativos e laborais de raiz local . Foi nas vésperas da IGuerra Mundial,que a maior parte dos centros urbanos do país,embora sem um mínimo de condições sanitárias,começam a ter pelo menos uma associação de classe representativa,ou um centro popular de “instrução e recreio” de raiz republicana,ou uma filarmónica e,pelo menos no sul, uma “Praça da República”. Nas associações de classe a dimensão cultural e recreativa era inseparável da luta por melhores condições de vida e, de existência. Por isso elas mantinham imprensa , bibliotecas , escolas, grupos de teatro, faziam festas e excursões . Por outras palavras, o conceito é inseparável da formação de uma comunidade de trabalhadores de raiz local, com as suas próprias instituições. Neste sentido, não existe já (como não existe há meio século, a não ser como figura de retórica doutrinária) “imprensa operária”.
Ela corresponde a uma fase na história do trabalho , que aqui desapareceu com a fascista corporativização dos Sindicatos durante o Estado Novo, e com a mais recente formação dos partidos políticos burgueses e de massas. Daí o paradoxo, de um país oligárquico e com uma elevadadíssima taxa de analfabetismo, tanto nos campos como nas cidades, de assistir-mos a essa profusão de jornais que terão desempenhado um papel importante na formação de identidades locais de raiz popular cobertas pelas “ideias sociais”.
Este tipo de jornal não dura 24 horas nem,no caso dos semanários,uma semana. Embora de raiz local,tem uma expansão regional. Se tomarmos o caso do Alentejo, por exemplo, os jornais de Mértola eram lidos em Cuba e vice-versa. Esta difusão fazia-se em muitos casos através de assinatura directa. As associações de classe , os centros recreativos e os políticos assinavam por vezes meia dúzia de títulos , uns de carácter corporativo , outros de feição regional e outros ainda,doutrinários ou informativos. Os soldadores de Setúbal que liam “Germinal” por exemplo, não deixavam por isso de ler a imprensa burguesa. O hábito de ir à associação ou ao seu clube ler o jornal aos domingos à tarde estava restrita a uma élite de operários politicamente mais activa.Na biblioteca particular do comunista libertário Francisco Ximenes, da aldeia Via Glória (Mértola), activo nos anos 1920 e 30, encontravam-se jornais publicados desde o Algarve até à Capital , na maior parte de tipo corporativo, desde os corticeiros aos trabalhadores rurais, passando pelos mineiros.
O gosto pela auto - formação e a sede de aprender é conhecida entre as élites operárias e sindicalistas neste período. Mas os casos excepcionais permanecem isso mesmo. Ler era um hábito burguês e dos trabalhadores que procuravam a emancipação social. E por esta via, na cultura sindicalista, a taberna e o vinho surgiam por outro lado , como alienantes que completavam a “missão” do capital de embrutecer o trabalhador.
Neste contexto e antes ainda da divulgação da telefonia nos anos 40, a difusão das ideias e de notícias por via oral era grande. A formação intelectual da maioria dos sindicalistas passava mais pelo sincero convívio e pela leitura da imprensa do que pelo estudo teórico permanente. Entre os mineiros de Aljustrel e os de São Domingos, por exemplo, lia-se o “Germinal” (de Zola) , “A conquista do pão (de Kropotkine), “A Felicidade de todos os seres na sociedade futura” ( do anarquista utópico de Beja, Gonçalves Correia) , leituras que tinham o dom da revelação ; mas principalmente lia-se “A Batalha”, e , nos anos 30, “A Voz do Mineiro” e o “Eco Mineiro e Metalúrgico”. De Marx, a maior parte conhecia quase tão sómente, a máxima que dizia que “a emancipação dos trabalhadores há-de ser obra dos mesmos trabalhadores”. E não era pouco , pois o dito slogan, continha todo um programa sindicalista revolucionário . Na boca corrente isso significava: “desconfiai dos burgueses amigos dos operários , dos socialistas e de todos os que pretendem enganar os trabalhadores, pensai por vós próprios, não abdiquem do vosso poder, não o alienem em cricunstância alguma para terceiros”. Um conjunto de máximas descontextualizadas que vinham substituir os provérbios tradicionais, serviam para a causa da emancipação social e formavam um conjunto coerente apesar disso.Citava-se também o já muito conhecido ultramontano Bossuet ao lado do russo Lénine e este , por sua vez , ao pé de Ezequiel de Campos, António Sérgio ou Malatesta, sem a noção de incoerência.
Enfim, e ao contrário do que sucedia com muitos títulos de livros teóricos , o número de exemplares desses jornais impressos ficaria aquém do número real de leitores.A imagem pictórica duma roda de jornaleiros que ouvem e comentam o“Trabalhador Rural” era tão folclórica quanto o que movia os lavradores a fazerem esperas nocturnas e perseguições individuais a “agitadores”. Noutros casos, a tiragens oficiais dos jornais seriam limitadas pelas apreensões policiais,frequentíssimas em jornais como “A Batalha” ou o vespertino anarco-sindicalista, também saído em 1919, o “Avante!”.
O ler algum jornal no café era uma figura estereotipada da pequena-burguesia urbana,do funcionário público , que nem por isso deixava de ser “socialista”. O jornal da classe era lido na Associação , em casa ou no local de trabalho onde por vezes era vendido. Agora, o cenário é evidentemente diferente nas cidades da província.
Mais importante foi a relação entre essa imprensa e a movimentação proletária. O jornal não é um mero formador de correntes de opinião nem de pensamentos , nem a “opinião” que forma tem um papel que habitualmente lhe destina o próprio sistema político. Daí a perversão da “liberdade de expressão e de imprensa” que motiva a permanente violação e intervenção das autoridades e das forças vivas quando, aparentemente,o movimento se situava “fora” da luta política burguesa. (Daí tédio que a actual pseudo imprensa política e sindical também transmitem). A emergência e a difusão dos jornais dessa época,surgia ainda indissociavelmente ligado à organização e à luta dos operários com autonomia em relação às organizações burguesas, vivendo os seus fluxos e refluxos constantes.
Esta natureza instrumental da notícia e da opinião impressa definia a sua própria difusão na época. Apesar da proximidade das minas de São Pedro da Cova em relação ao Porto, os jornais de classe só aí entraram quando a Federação do Norte, estabeleceu contactos estreitos durante a I Grande Guerra . A organização do movimento sindicalista em uma determinada localidade , era habitualmente traduzida por “denúncias” de situações algo “desumanas” por alguém de “dentro” , havendo correspondência com a difusão local do texto impresso. A liberdade de expressão tinha aqui portanto o sentido duma indignação perante uma realidade ofensiva duma outra ordem moral que se pretendia (in)existente. Um fundo moral humanista com raízes cristãs e burguesas, persiste na denúncia do mal supremo que é o capitalismo.
Um forte sentido moral ligava-se à noção de honra. Quando é proclamada a Greve Geral em Lisboa de solidariedade para com os operários da C.U.F. , ”A Batalha” , que contava com a solidariedade dos tipógrafos, anunciava que: “...não se publicará amanhã, para que os jornais de intuitos opostos aos nossos, como são os jornais burgueses- que esperamos também não saiam– não possam supor que aproveitamos o momento para, encontrando-nos sós em campo, recolher os lucros que da falta de concorrência nos podiam advir”.
A palavra livre era o verbo libertador, criador de uma realidade em devir, mobilizador e, portanto, actuante. Ela seria por isso objecto de uma atenção privilegiada das autoridades formalmente constituídas ou dos poderes reaccionários que se organizaram num período de desagregação do poder do Estado como foi o do pós-guerra . Estamos ainda longe da palavra de ordem com as massas ordeiramente disciplinadas a obedecerem a “meneurs” profissionais.
Como parte integrante do movimento operário e no contexto da Revolução europeia que se desenhava no pós-guerra, a “A Batalha” nascia em 1919 como o jornal do operariado português. “Os operários –todos os operários,e os gráficos estão também incluídos –têm um jornal seu. Esse jornal é “A Batalha””,escrevia o “Avante!” em 20 de Junho de1919. Para além da publicação de notícias internacionais,de comentários políticos em editorial e pequenas histórias do mundo do trabalho, além de “fait-divers” e anúncios comerciais, surgiam também convocatórias de grupos anarquistas ou de associações de classe. E foi através de “A Batalha”, que se divulgaram formas de luta e de resistência como a então denominada “cozinha comunista” , utilizada durante as longas greves dos trabalhadores da CUF (em 1919), e em grupos tão isolados como os mineiros de Aljustrel (1922/3), os mineiros de São Pedro da Cova (em 1924) ou São Domingos (1932). Pelo jornal passou a estratégia de solidariedade de todos os nossos trabalhadores:“A todos os trabalhadores conscientes.Camaradas!É necessário que nenhuma classe deixe de contribuir com a cota de $10 semanais estabelecida pela U.S.O. e pelas Federações de Indústria, para o auxílio aos grevistas da União Fabril”, (19.Junho.1919).
A campanha de solidariedade na greve dos ferroviários em 1920 levaria a “A Batalha” a apelar aos trabalhadores que recebessem em suas casas os filhos dos grevistas.Em várias ocasiões o jornal teria um papel chave na luta e na organização da solidariedade, como o fez durante a greve de 3 meses dos “heróicos mineiros de Aljustrel”.E esta integração na própria movimentação social justificava anúncios destes na última página do jornal:“Ao proletariado português: Pela jornada legal de trabalho reduzida ao máximo de 8 horas!”.
Quase 100 anos depois,o papel das organizações sobrepõe-se ao indivíduo e à liberdade. A ele cabe-lhe escolher entre os muitos títulos disponíveis de jornais ( maioritariamente burgueses), de revistas (decadentes), de sindicatos (colaboracionistas) e de partidos (na sua maioria reformistas), o que melhor se adequa aos “seus interesses” ou nutrir o mito da sua impotência ( não esquecer que a oferta é controlada e a escolha é limitada,e quase sempre a notícia é manipulada de acordo com os interesses da burguesia ). Da falência na feira das ideias caminhamos para a falência na feira das organizações do trabalho. Deste modo , o jornalismo sindical hoje, não vale já 10 minutos com o Super Mário e a classe trabalhadora descobre que as organizações não lhes servem para nada quando eles mais precisam delas. O ciclo do credo e desilusão , dos indivíduos nos sindicatos alterna hoje com o ciclo das adesões às seitas religiosas , ao clubismo doentio e com os movimentos xenófobos, de acordo com as taxas de desemprego e com a crise moral. Os movimentos subversivos clandestinos ou tolerados e potencialmente revolucionários não só escapam à comunicação social como, por vezes, se dirigem contra ela. No mundo da informação a história quotidianamente feita surge como uma representação paranóica ( com palco! ) duma realidade que (nos) foge. A história mora ao lado da informação.
(trabalho do camarada P.Guimarães)