O número um de A Batalha, o mais importante jornal operário e sindical da Primeira República, apesar da sua natureza anarquista, viu a luz do dia em 23 de Fevereiro de 1919. E o último saiu no dia 26 de Maio de 1927, exactamente um ano após o golpe militar e da implantação da Ditadura, que caminhava aceleradamente para a fascização do regime político em Portugal.
No dia 27 de Maio de manhã, uma horda de malfeitores e de polícias à paisana, com o construtor civil Martins Júnior à cabeça, protegidos por cordões de polícia de espingarda em punho, chefiados pessoalmente pelo comandante da PSP, coronel Ferreira do Amaral, destruiu a golpes de picareta as instalações e o equipamento do diário matutino operário, que coabitava na mesma sede com a CGT, a Juventude Sindicalista, a União dos Sindicatos de Lisboa e a Federação dos Sindicatos da Construção Civil, na Calçada do Combro.
(1) Mário Castelhano, Secretário-geral da CGT, que viria a ser preso pouco tempo depois e deportado para África com mais 400 activistas sindicais e políticos
(2) , de onde regressou após quatro anos, voltando à prisão a seguir à greve geral de 18 de Fevereiro de 1934, e desta vez enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde veio a morrer, era então o seu Director. Tendo assistido, com outros activistas que estavam na sede ou ali se juntaram, indignado, mas impotente, ao assalto, organizado e executado de forma militar e fascista pelo poder politico instalado.
A Batalha foi o cume de uma época de ouro do jornalismo sindical. Época que se iniciou com a fundação de A Greve, em 1908, continuou com O sindicalista, entre Outubro de 1910 e 1916, e O Trabalhador Rural, órgão dos sindicatos rurais, editado em Évora no mesmo período. Jornais sindicais de âmbito geral, que inspiraram o surgimento de inúmeros órgãos de informação de associações de classe e sindicatos, e criaram as condições para o feito extraordinário que foi a criação, pelo movimento sindical português, do diário A Batalha, a seguir ao fim da I Grande Guerra Mundial.
A Greve, cujo primeiro número saiu a 18 de Janeiro, publicou-se como diário durante quatro meses, fruto de trabalho militante, e foi o elemento catalizador de uma tentativa séria de unir o movimento sindical, e de estabelecer a coordenação geral da sua acção. Em torno da feitura e distribuição de A Greve, juntaram-se activistas sindicais socialistas, anarquistas, e revolucionários. Foi o caldo de cultura preparatório do Congresso Sindicalista e Cooperativista de 1909, e da intensa luta operária que se desenvolveu nas vésperas da implantação da República, que teve continuidade e se intensificou após o 5 de Outubro de 1910.
O Sindicalista inicia a sua publicação como semanário no final de 1910, segue a linha de orientação de unidade que teve expressão em A Greve, e transforma-se rapidamente no porta-voz das aspirações e reivindicações dos trabalhadores. É um factor determinante no movimento da reorganização sindical que tem como motor o Congresso Sindicalista de 1911, e que culmina com o Congresso de Tomar em 1914, que funda a primeira central sindical portuguesa, a UON – União Operária Nacional.
O Trabalhador Rural, mensário de âmbito mais restrito, dada a sua condição de órgão de informação dos sindicatos agrícolas do Alentejo, tem todavia grande importância pelo papel precursor que teve na defesa e na organização dos trabalhadores rurais, com repercussões profundas na luta do operariado agrícola, até há bem pouco tempo bem presentes na vida e na acção das populações alentejanas e ribatejanas.
A Batalha chegou a ser o segundo diário português, com uma tiragem média de 20 mil exemplares, tiragem que atingia os 40 mil exemplares por ocasião das lutas sindicais mais agudas,
(3) em concorrência com diários da burguesia como o Diário de Notícias e O Século.
Em todos estes jornais colaboraram de forma militante, escritores, jornalistas e políticos progressistas da época, mas foi toda uma plêiade de jornalistas operários, que trabalhavam nas fábricas, nas oficinas e nos campos, e simultaneamente eram dirigentes de associações de classe e de sindicatos, que os dirigiram e lhe deram o seu cunho essencial de porta-vozes dos explorados e de guias para a luta da classe operária.
De entre estes militantes, destacam-se Francisco Perfeito de Carvalho, tipógrafo, primeiro Secretário-geral da UON, um dos principais redactores de A Batalha, e quem lhe propôs o nome e lhe desenhou o cabeçalho pelo próprio punho. Manuel Ribeiro, empregado da CP, fundador do Bandeira Vermelha, órgão da Federação Máximalista, a primeira organização dos comunistas portugueses. E Carlos Rates, operário conserveiro, e um dos mais destacados sindicalistas da Primeira República, todos pertencentes ao núcleo de sindicalistas que viriam a fundar o PCP, em 1921. Rates viria a ser o primeiro secretário-geral do Partido
(4) .
Com a substituição de Alexandre Vieira (que foi o director do diário operário até 1922) por Manuel Joaquim de Sousa, operário têxtil, anarquista radical, e Secretário-geral da CGT no período da hegemonia anarquista da central sindical, A Batalha acentuou o cunho de porta-voz da CGT, e tal como a central, passou a tratar os comunistas como inimigos em vez de potenciais aliados. Incorrendo no conhecido erro histórico da recusa sistemática da Frente Única contra o fascismo, que lhe foi proposta pelo PCP por diversas vezes.
Alexandre Vieira era dirigente sindical, operário gráfico, e foi o mais prolífico e longevo de entre estes jornalistas sindicais que fizeram história. Alem da direcção de A Batalha foi ainda ele o director de A Greve, durante a monarquia, do Sindicalista, e dirigiu ou colaborou em mais treze jornais.
(5) Eram homens que de uma forma brilhante, utilizaram os jornais como arma de combate à exploração, e na organização e mobilização dos trabalhadores para a luta.
Não admira pois que a burguesia os tenha perseguido de forma tão feroz.
A repressão sobre os trabalhadores e a imprensa sindical durante a RepúblicaA violência da repressão fascista contra os trabalhadores, os sindicatos e a imprensa sindical não deve fazer esquecer a repressão contra o movimento operário que se verificou durante a República.
Afonso Costa, o mais influente político da República, ainda hoje muito elogiado e incensado por múltiplos quadrantes da sociedade, ficou conhecido pelo cognome de o racha sindicalistas, tal foi a senha persecutória com que reprimiu os sindicatos e as lutas operárias sempre que esteve no poder.
A forma como os governos republicanos reprimiram a contestação social à política anti-operária teve grandes responsabilidades na ascensão do fascismo em Portugal, e contribuiu para alargar a base social de apoio que teve no início, levando importantes franjas do operariado e da população a pensarem que fosse qual fosse o regime político que viesse seria melhor que o que estava.
Não houve ano nenhum durante a República até ao 28 de Maio, em que o poder politico não tivesse lançado as forças policiais sobre a luta dos trabalhadores, e mandado prender dirigentes e activistas sindicais, em muitos casos violando as suas próprias leis.
A Batalha foi objecto de actos de repressão violenta por parte do poder político em cada um dos seus oito anos de existência como diário. O jornalista Jacinto Baptista, na sua monografia sobre o jornal, assinala 21 desses episódios, entre assaltos, prisão de redactores e operários, encerramentos, apreensões, e proibição de circulação, muitas vezes por vários dias.
Cinco meses após o seu aparecimento, durante uma greve de solidariedade para com centenas de trabalhadores da CUF, que Alfredo da Silva tinha despedido, acusando-os de sabotagem por estarem em greve,
(6) o diário operário é objecto de um desses actos desbragados de repressão.
217 operários são presos e levados para o picadeiro da GNR no Quartel do Carmo, entre os quais está incluída a comissão organizadora do II Congresso Operário que se viria a realizar em Novembro desse ano em Coimbra, e a redacção, a administração e os tipógrafos de A Batalha, impedindo a sua publicação.
A violência do Governo desencadeou um movimento de solidariedade mais alargado, que incluiu a greve geral no sector gráfico, que fez com que os jornais burgueses também não saíssem.
É no contexto desta onda repressiva, que numa greve em que ocorrem actos de sabotagens no material e nas linhas ferroviárias da CP, o Governo de Sá da Costa inaugura o sinistro vagão fantasma, que consistia em colocar à frente de cada locomotiva, um vagão Jota, descoberto, cheio de grevistas, que, assim, quando o comboio descarrilava ou ia pelos ares devido a actos de sabotagem, eram chacinados por iniciativa terrorista do Estado.
Ao Governo pouca importava que os actos de terrorismo fossem praticados pelos grevistas ou por outros. Demais sabia ele que muitas vezes era a própria polícia que, para justificar a repressão, punha as bombas e fazia outras provocações. E conhecia também que, a par dos grupos anarquistas que adoptaram métodos terroristas, havia o contraponto dos grupos da direita reaccionária que ia ainda mais longe na utilização desses métodos.
Mas ao Governo da burguesia republicana o que lhe importava, sem olhar a meios, era reprimir os trabalhadores que, numa situação de inflação galopante, de desemprego e de fome, lutavam por melhores salários e pela sobrevivência das suas famílias.
Em pelo menos três dos assaltos que a polícia fez à sede do jornal que era simultaneamente a sede da central sindical, fê-lo a tiro e à coronhada, destruindo móveis, empastelando a tipografia e prendendo os ocupantes.
Mas a burguesia utiliza também métodos de perseguição mais sofisticados. Em 2 de Março de 1926, correm no Tribunal da Boa Hora onze processos contra A Batalha.
A censura também marcou presença desde a primeira hora, embora inicialmente caricata e artesanal. A partir de Julho de 1919, as autoridades postaram um polícia na casa de impressão, que, logo que era impresso o primeiro exemplar do jornal, o levava ao Governo Civil para que fosse lido. A leitura prolongava-se em regra e propositadamente até altas horas do dia, e o matutino operário, só tarde, muito depois dos jornais da concorrência estarem a circular é que saía.
O fascismo começou por dar continuidade ao mesmo tipo de repressão usado pelos republicanos, depois refinou e sistematizou métodos, com a censura sistemática e permanente, a criação de uma nova polícia política, e mais tarde todo um sistema institucionalizado de perseguição sobre todos os que se lhe opunham, que incluía campos de concentração como o Tarrafal.
Com o fascismo a repressão viria a atingir proporções e formas inauditas e dramáticas.
Segundo as várias informações, entre 1926 e 1939 morreram durante revoltas, em combates de rua, mais de 200 pessoas, e foram feridas cerca de mil. Foram presas cerca de 15 mil pessoas por motivos políticos. E, mais de 1500 desses presos foram para as colónias e para as Ilhas. 800 sindicalistas, libertários e comunistas foram deportados sem julgamento e encarcerados em prisões e campos de concentração, onde morreram ou cumpriram longas penas de prisão.
Como se pode comprovar olhando para a história, o capitalismo não olha a meios para atingir os seus fins. A exemplo do que aconteceu noutros pontos do mundo, em Portugal, para travar o ímpeto revolucionário do movimento operário e ultrapassar as suas dificuldades internas, passou da liberdade fortemente condicionada que permitia às classes exploradas, no tempo de República, à proibição total de todo o tipo de liberdade a todos os que se lhe opusessem.
Face às tentativas grosseiras de falsificação da história a que assistimos nos dias que correm. Que incluem o branqueamento dos crimes da ditadura fascista e a reabilitação de Salazar. E quando já se começa a falar de forma grandiloquente nas comemorações dos 100 anos da República, a assinalar em 2010, é preciso contrapor aos que apenas vêem virtudes na República ou tentam branquear o fascismo a vileza e a brutalidade de que se serviram para reprimir os explorados e os que mais lutaram pela democracia e pela liberdade.
(1) David de Carvalho, Os sindicatos Operários e a Republica Burguesa (1910 – 1926), Edições Seara Nova, Lisboa, Março de 1977.
(2) Jacinto Baptista, Surgindo Vem Ao Longe a Nova Aurora…, Para a História de A Batalha, 1919/1927, Livraria Bertrand, Lisboa 1977.
(3) Jacinto Batista Op. cit.
(4) Carlos Rates viria mais tarde a ser afastado do PCP e a aderir ao fascismo.
(5) Alberto Pedroso e António Ventura, Alexandre Vieira, Edições Um de Outubro, Lisboa, 1985.
(6) Manuel Joaquim de Sousa, O sindicalismo em Portugal, Edições Afrontamento, Porto, Setembro de 1974.