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LIBERDADE E BEM ESTAR

LIBERDADE E BEM ESTAR

(memória libertária) A Escola Operária “Francisco Ferrer” de Évora

16.12.14, uon

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2014/12/15/memoria-libertaria-a-escola-operaria-francisco-ferrer-de-evora/#more-7845

 

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A educação enquanto ferramenta para a liberdade e para a construção de um mundo melhor foi sempre um elemento importante no movimento operário de inspiração anarquista e anarco-sindicalista. Não confiando no ensino ministrado pela igreja ou pelo Estado – que visaria formar indivíduos submissos e pouco autónomos, enredados na propaganda patriótica e nacionalista – e defensores do ensino para todos, os sindicatos anarco-sindicalistas e as associações operárias criaram muitas vezes, elas próprias, escolas para difundirem os ideais do progresso e da liberdade, através de um ensino racionalista e não hierárquico.

Dezenas de experiências foram feitas em Portugal, como em todo o mundo, muitas delas tendo como base o método desenvolvido pelo catalão Francisco Ferrer e cujo fuzilamento pelo estado espanhol, a 13 de outubro de 1909, em Barcelona, tanta emoção e revolta causou. Muitas das escolas criadas em Portugal durante as décadas de 1910 e 1920 basearam-me nos métodos da “Escola Moderna”, desenvolvidos por este pedagogo anarquista.

Em Évora, o movimento operário também sentiu desde muito cedo a necessidade de um ensino que escapasse às lógicas da Igreja e do Estado, acessível para todos, e que garantisse aos trabalhadores e aos seus filhos instrumentos para a sua emancipação.

Segundo Joffre Alves (abrildenovoblogspot.com) o Grupo de Propaganda Livre de Évora, a que pertenceram Elias Matias e José Sebastião Cebola, terá mantido na década de 1910 uma escola de instrução primária nos arredores da cidade (Canaviais).

Outra tentativa surge já no final da década e dela dá conta, em sucessivos números, o mensário “Aurora Social”, que é o porta-voz assumido da União dos Sindicatos Operários de Évora.

 

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Em artigo assinado por Joaquim Nogueira, que a partir de Dezembro desse ano ocupará o cargo de secretário-geral da USO, e sob o título “Escola Francisco Ferrer da U.S.O de Évora” escreve o jornal “Aurora Social” no seu nº 1 de Novembro de 1919:

“Havia muito que esta União, reconhecendo a necessidade inadiável da creação de uma escola onde os trabalhadores podessem receber o pão do espírito a par do conhecimento gradual da instrução elementar, vinha fazendo uma aturada propaganda e amealhando algumas centenas de escudos produto de espectaculos animatográficos e no teatro Garcia de Rezende, a que o operariado de Evora tem entusiasticamente acorrido, por vezes, com casas cheias, demonstrando a sua solidariedade moral e material para a fundação da nossa escola.

Aí está, pois, com material novo, pronta a seguir a missão que lhe foi confiada. Inaugurada no dia 13 de Outubro com uma sessão soléne na qual fizeram uso da palavra vários elementos operários, erguendo bem alto o sentimento de solidariedade com a obra de Ferrer, o respeito e veneração por êsse genio extraordinário do Bem, apóstolo da Verdade, cujo nome envolto numa aureola refulgente de luz ilumina os povos para a Verdade fecundante que ascende ao mais elevado planalto da perfectibilidade humana. Esse nome dignifica a escola da U.S.O. inaugurada no dia em que o reaccionarismo exarou nas paginas negras da sua historia de sangue o assassinato material daquele que perdurará eterna e moralmente na alma das multidões famintas de pão e sedentas de justiça.

Aquela sessão encheu-nos de fé, encorajou-nos, deu-nos novas energias para levarmos a cabo a obra de educação da U.S.O.A vasta sala da escola, apesar da festa politica da cidade, encheu-se de operários de ambos os sexos, animados pela convicção de que alguma coisa mais de util, de grande e de moral se passava ali na assembleia proletária, que fazia a sementeira do Amôr, do que na audição da musica e no goso visual da iluminação, cantando epopeias de ódio e iluminando actos insociais de misérias degradantes.

Iniciou o seu ano lectivo com 123 alunos inscritos nas 4 classes de que são professores os srs. Serafim de Mira e José Joaquim d’Oliveira, espargindo a luz no meio da treva que envolve as classes operárias, mercê do indiferentismo sistemático que em Portugal tem havido para com a instrução publica.

Falta agora dar-lhe vida própria. A cóta auxiliar, além de não sêr um método sindical, porque não unifica o esforço material de toda a colectividade interessada, e antes pelo contrário estabelece a desigualdade creando privilegiados que usofruem os beneficios de uma minoria que paga para a colectividade inteira, não garante a vida da nossa escola visto que, pelo principio da voluntariedade, e apezar de alguns operários pagarem uma cóta relativamente elevada, outros há que apezar da sua boa vontade, as condições económicas da sua vida os obrigam ao pagamento de uma cota mais restricta, e outros ainda nada pagam, concluindo-se que a receita da cotisação voluntaria não cobre a despesa da escola, estando consequentemente na contigência de desaparecer por falta de verba.

Não vai, nestas considerações, uma censura ao operariado organizado de Evora que bem tem demonstrado o seu amôr pela escola, já pela solidariedade que lhe tem vindo dispensando, já pela assistência de matriculas que excedeu a nossa expectativa. Tambem a U.S.O. já previra que a cóta voluntária não era um meio de receita perdurável para a manutenção da escola, estabelecendo-a como meio transitório para o seu inicio electivo. Qual será, pois, o método de contribuição para garantir a vida da escola? É a cóta de meio centavo diário (5 réis) paga por todos os operários organizados de Evora. 150 réis cada mês e teremos estabelecido o principio de igualdade sindical, mostrando que temos uma noção exacta do que queremos e para onde vamos.

A escola vigorizada pelo esforço colectivo de todos os proletarios sindicados vogará serena por sobre a vaga agitada do ciclone que passa, mantendo as suas portas abertas e creando as envergaduras capazes de receber o mandato que a história nos léga.

Esta receita póde também manter a estabilidade da Aurora Social com duas tiragens por mês e distribuído gratuitamente pro todos os operários organizados, que além da propaganda associativa, revela-lhes a situação económica e moral da escola e a vida sindical da localidade.

A U.S.O. muito em breve irá junto das assembleias gerais dos sindicatos demonstrar-lhes a necessidade da cóta obrigatoria para a manutenção da escola e do órgão oficial da organização local, contando que os trabalhadores continuarão a não regatear o seu concurso para uma obra que é fundamentalmente sua. Joaquim NOGUEIRA”. (“Aurora Social”, nº1. Novembro de 1919)

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Embora nessa edição do jornal, as contas da USO apareçam equilibradas (fruto também do espectáculo realizado anteriormente e que terá dado um saldo de 202$68) a verdade é que no número seguinte de “A Aurora Social” (de Dezembro de 1919), o tema do apoio económico à Escola Francisco Ferrer – que funcionava numa sala da sede da União de Sindicatos, na Praça Joaquim António d’Aguiar, 14, sede também do boletim “Aurora Social” –  motiva também nova notícia, esta dando conta de que o Grupo Dramático da União de Sindicatos (também chamado “Aurora Social” ) está a ensaiar uma nova peça para levar à cena no teatro Garcia de Resende.

“Está em ensaios, no teatro Garcia de Rezende, a magnifica peça social do laureado dramaturgo Bento Mantua, Ordinario… Marche, 3 belos actos de ensinamentos dolorosíssimos em que o insigne escritor, escalpeliza indignadamente o porubentismo da actual sociedade corrupta, que se afunda na depravação do vicio, do egoísmo e do crime, envolvendo nas malhas pérfidas da iniquidade social os bons, os simples, os que trabalham, as eternas forças vivas das sociedades.

Bento Mantua, com mão de escritor consagrado, sem tiradas de chavãs, subtilmente, divide pelas 18 personagens, do seu Ordinario…Marche, e com uma precisão pouco vulgar, sem perder nunca oportunidade nas diversas fases da peça, toda a sua reprovação contra a actual estrutura da sociedade. O Grupo Dramatico «Aurora Social», da União dos Sindicatos Operarios de Evora, escolheu esta peça para ser representada brevemente no teatro Garcia de Rezende em benefício da escola da U.S.O.

Será talvez o ultimo apelo que a comissão administrativa deste organismo fará aos trabalhadores para que a nossa escola não morra por falta de recursos, visto que, no fim do próximo mez de Janeiro, deverá começar a cobrança de meio centavo, cada dia, a todos os operários organizados de Evora – única forma pratica de a podermos manter.

Não é perdurável a existência da escola e do boletim, sem que tenham vida própria, e a receita de espectáculos é eventual, alem de se esgotarem nas lides de ensaios e de recitas muitas energias indispensáveis nos trabalhos da organisação operaria, e jamais nesta hora em que estão pendentes múltiplos assuntos de magna importância, de que não podemos descorar, sem prejuízo dos nossos interesses morais e materiais. A comissão administrativa da U.S.O. sabe que os operários organizados de Evora estão decididos a manter a sua escola porque ela é o facho aurifulgente que ilumina a estrada da sua emancipação. Continua pois a contar com o seu incondicional apoio moral e material, e já sabe que o teatro Garcia de Rezende se encherá mais uma vez para a Escola, e que no fim de Janeiro nenhum trabalhador organizado regateará o pagamento da quota indispensável para a sua perduração futura.

Ao teatro, pois”. (“Aurora Social”, nº 2. Dezembro de 1919)

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Nesta edição do “Aurora Social”, na secção do Balancete da USO de Novembro de 1919, o saldo ainda é positivo, entre receitas e despesas, mas nota-se um grande aumento de despesas sobretudo com diverso material destinado à escola (atlas de geografia, esfera, mapa, artigos de papelaria para escola, gratificação ao professor, etc.).

No nº 3, de Janeiro de 1920, ao mesmo tempo que informa ter sido constituído em Évora o Sindicato Único das Classes da Construção Civil, o jornal “Aurora Social”, mais uma vez pela mão de Joaquim Nogueira, volta ao tema da “Escola Ferrer da União dos Sindicatos Operarios de Evora”, refutando “os que rastejam na sombra atentando contra a nossa obra” e “a calunia” e o “cinismo grosseiro” de alguns:

“O operariado organizado de Evora acaba de demonstrar que o fenomeno, o sinal dos tempos que nesta hora agita o proletariado mundial numa estremeção de consciência que o hade redimir da escravatura politica e económica da actual sociedade, que esse fenomeno, esse sinal dos tempos é por êle compreendido, acompanhando a par e passo, as manifestações que despertem, os escravos do salariato, descendentes dos elótas mediáveis para uma pátria nova de paz e de luz, vasta como o universo, justiceira como o ideal sublime que a edifica sobre o principio da solidariedade internacional dos povos. Compreendeu que o ensino escolar, tão positivo e racional quanto seja possível no meio ambiente depravado em que vegetamos, é a forma pratica de formar uma geração capaz de cumprir o mandato que a historia nos confere.

E essa convicção levou os trabalhadores organizados de Evora a ligar estreitamente os destinos da escola da U.S.O. à vida sindical desta cidade, pelo aumento de 5 centavos nas cótas associativas de todas as classes, assegurando assim a vida própria e perdurável da escola que cumprirá cabalmente a missão educadora para que  foi creada, mau grado de alguns imbecis, que usam os processos do jesuíta de roupêta negra, e rastejam na sombra atentando contra a nossa obra, por que a luz que dela erradia fascina-os como a faulha dispendida das nuvens.

Oh! Jesuitas de côres berrantes, sabei: A moral da organização operaria ocupa um plano superior ao da vossa moral de pastilha.

Quando a organização operária em Evora tiver sede própria sua, o que não se fará esperar muito, por que o proletariado orgnisado tem tudo que quizer, sabei que a escola da U.S.O será a escola central da cidade, porque o povo trabalhador assim o quer, porque é ela que livra de preconceitos convencionaes, caminhará com firmeza pela verdade pedagógica destruindo rapidamente o analfabetismo, a parasitagem e o alcoolismo, herança que nos foi legada pelos frades vossos antecessores na estupidez, na calunia e no cinismo grosseiro de histriões de freira.

Sabei que a nossa escola inscreve nos seus mapas oficiaes legalmente escriturados, ao dispor de quem quizer vêr e até do Dig.mo inspector das escolas, os nomes de mais de 100 operarios adultos e menores, com uma presença media diária de 71 alunos, verificando-se no mês de Dzembro p.p. 1.404 presenças. Foi a Escola da U.S.O. inaugurada em 13 de Outubro de 1919, pelo esforço de alguns elementos operários, e ao fim de quatro mêses tem assegurado a sua existência porque é uma célula integrante da organização operaria que não podereis destruir com as vossas diatribes porque o nosso organismo é o elo que nos prende a sociedade futura. Joaquim NOGUEIRA.” (“Aurora Social”, nº3.  Janeiro de 1920)

A última página deste 3º número da “Aurora Social” é totalmente dedicada ao anúncio do espectáculo que se irá realizar no Garcia de Resende, e cujas receitas reverterão para a Escola Francisco Ferrer:

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Na edição do “Aurora Social”, nº 4, de Fevereiro de 1920, uma notícia breve dá conta da realização d’ “O nosso espectáculo”:

Capturar4“Como estava anunciado, realisou-se no dia 25 de Janeiro p.p. o espectáculo promovido pela U.S.O. em beneficio da Escola Operaria «Francisco Ferrer» que, a despeito dos imensos obstáculos que lhe opuseram, decorreu animadissimo, sendo os interpretes muito aplaudidos.

A receita liquida excedeu a nossa espectativa apezar das promessas feitas por alguns srs. Veradores na questão do aluguer do teatro, promessas que não foram cumpridas, nem por sonhos.

Num espectáculo em beneficio duma escola nem um centavo das despezas foi diminuído! Sêlo, Empreza alugadora, tudo puxou para seu lado, na intenção de nos despojarem da magra receita!

Até a Câmara Municipal, depois de nos prometer a cedência gratuita do teatro, no exigiu 60$00 de deposito na véspera do espectáculo e nos levou 30$00 pelo aluguer do teatro por uma noite, 5$00 por um ensaio, 4$50 de gratificação obrigatória ao guarda do teatro! Isto num país onde se grita que há 75% de analfabetos!

Como querem então que o Povo se instrua e diminua o analfabetismo em Portugal?

Ora…bolas.” (“Aurora Social”nº 4. Fevereiro de 1920)

Nas contas, mensalmente apresentadas pela USO, verifica-se que a entrada de quotizações para a escola registam um pico em Dezembro e depois começam a cair, o que faz com que o saldo comece a ficar bastante desequilibrado, uma vez que as despesas com o professor e com o material para a escola se mantêm quase constantes. Só a receita do espectáculo no Garcia de Resende permite manter o saldo positivo.

O nº 5 do jornal (Março de 1920) não faz qualquer referência à Escola “Francisco Ferrer”, a não ser na rubrica do balanço de contas da USO, referente a Fevereiro, que contabiliza as receitas do espectáculo de 25 de Janeiro e as despesas com o pagamento ao professor e com diverso tipo de material escolar.

No  nº 6 do jornal, datado de Maio de 1920, o balancete da USO (referente ao mês de Março) dá ainda conta de diversos pagamentos quer ao professor, quer de material didáctico. Depois perde-se o rasto a esta escola . O boletim “Aurora Social” deixa de publicar-se regularmente a partir deste número (sairá ainda um “número único” a 1 de Maio de 1922), eventualmente por questões financeiras, agravadas pela saída do seu principal redactor, Aníbal Queiroga, que parte para Lisboa.

Fica, no entanto, a memória desta Escola Operária Francisco Ferrer, que funcionava em pleno centro de Évora, juntamente com o Grupo Dramático “Aurora Social”, os dois ligados à União dos Sindicatos Operários de Évora. Isto em 1919/1920. Haverá alguma comparação com os actuais “sindicatos”, meros lugares de emprego e de poder de uma casta sindical ligada aos aparelhos partidários para quem até a própria expressão “mudar o mundo” assusta porque põe em perigo as regalias que foram acumulando enquanto “representantes dos trabalhadores” e elementos de relevo no actual sistema de dominação e exploração?

V.M.J.

na escola

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